Aniceto, o minucioso

Cadernos e caneta em cima de uma mesa

ANICETO, O MINUCIOSO

Naquele dia, Aniceto perdeu-se em Marlene na lavandaria. Quem diria?
Aniceto, o minucioso, que usava o cabelo penteadinho com gel, com canais marcados pelo pente de dente largo. O que vivia em casa da sua tia Clotilde, jeitosa de mãos, na baixa lisboeta, num quarto andar dum prédio de gaveto, sem elevador.
De manhã, Aniceto ouvia o despertador, levantava-se prontamente e, sentado ainda na cama, com o corpo em ângulo recto, estendia as pernas e esticava os braços para se espreguiçar por dois segundos e meio.
Calçava os chinelos que, paralelos, aguardavam do lado direito da cama e, já desperto, entrava na casa de banho pronto para a fascina corporal rigorosa.
Quarenta e sete minutos contados e Aniceto saía da casa de banho perfumado, com o cabelo enjeitado.
No quarto, vestia a camisa beige às riscas transparentes e, “perfeccionisticamente”, abotoava a camisa até chegar ao desejado colarinho, cujo botão lhe dava especial prazer a abotoar.
De pequeno-almoço tomado, beijava a testa da tia Clotilde e desejava-lhe que ficasse na Santa Paz do Senhor antes de sair à rua.
Naquele dia, Aniceto passou em frente do café do senhor Lucínio e, como sempre, deu os bons dias ao patife do Julião, o ganancioso que perdia as tardes na mesa de jardim em apostas usurárias.
Volvida a esquina, entrou na dita lavandaria, para levantar a roupa do dia anterior ao de ontem. Ao entrar, cruzou-se com Marlene, uma desconhecida.
Nesse instante, Aniceto conheceu Marlene, a dada, que de tanto se dar, pensou ter-se já dado a Aniceto e, em jeito de rotina, se lhe ofereceu sem constrangimento.

Atormentado, Aniceto perdeu-se:
“Ai que doce e tão branca tormenta não existe,
porque quem fez o mundo,
fez esta branca alegre
e a minha tormenta triste!”