A Dois

Cadernos e caneta em cima de uma mesa

A DOIS

Naquela manhã, levantou-se da cama ao raiar do sol. Abriu a janela e espreguiçou-se à varanda. Ao ver brilhar o sol com tanta força, respirou bem fundo e jurou a si mesmo que hoje iria até lá. Em pouco tempo desceu à rua. Montou-se na bicicleta e começou a pedalar. Ainda que só chegasse ao anoitecer, haveria de ir lá hoje.

Desceu a encosta à velocidade da luz, como quem quer viver o dia num minuto, e seguiu pela margem do rio, deixando para trás a pequena aldeia. Pedalava debaixo do intenso calor matinal, mas sentia o vento refrescá-lo, amenizando aquele sol infernal.

Pela margem do rio pedalou horas a fio. Enquanto pedalava, nada lhe ocupava o pensamento, sentia-se uma pena, sentia-se tão leve que deixava que os seus olhos postos sobre a paisagem o fossem distraindo.

Já se aproximava o final da manhã quando, ao longe, avistou uma rapariga agachada à beira-rio. Aquela figura serena prendeu-lhe a atenção. Ainda não conseguia distinguir bem o que a rapariga fazia, mas parecia estar a refrescar-se, levando lentamente água à cara e, de quando em quando, parecia matar a sede levando água à boca com a mão em concha.

Abrandou o ritmo e, sem olhar para ela, passou-lhe pelas costas. Continuava a pedalar, mas não mais ao ritmo alucinante com que o tinha feito até então. Ela sentiu-o passar, voltou a cabeça e seguiu-o com os olhos. Começava a perdê-lo de vista quando, de repente, se levantou, pegou na sua bicicleta e começou a pedalar o mais rápido que conseguia. Ele percebeu que ela o seguira e passou a pedalar devagar, muito devagar, a um ritmo quase de passeio. Foi-se deixando seguir e a rapariga foi, confortavelmente, pedalando atrás dele. A tarde tornara-se amena e perfumada. Havia um perfume fresco no ar, um cheiro a flores e a frutos, um cheiro intenso que os guiava por caminhos que não conheciam. E assim passaram por vales profundos em que se deixaram afundar e por campos dourados de trigo em que perderam a vista. Assim foram atravessando campos vermelhos de papoilas que contrastavam com os de girassóis amarelos. Viram lagos e lagoas luzirem como espelhos. Passaram por quintas e propriedades bem tratadas, onde experimentaram o prazer de invadir terra alheia e gozaram o perigo. Pedalaram em caminhos empedrados, calçadas esburacadas, em relvados de pasto e terras enlameadas. Nada os perturbava e tudo lhes enchia a alma. Ao entardecer começaram a pedalar mais depressa. Iam agora a grande velocidade, porque queriam chegar antes de anoitecer. Ele à frente e ela logo ali atrás. Chegaram. Pousaram as bicicletas e correram sem olhar para trás. Correram ofegantes, atravessando dunas e mais dunas de areia fina. Aquele manto dourado de areia parecia não ter fim. Mas, finalmente, avistaram o mar. Pararam. Sentaram-se, e, ao lado um do outro, ali ficaram em silêncio. Saborearam a maresia, escutaram o barulho das ondas rebentar e viram a cor do céu confundir-se com a da água. Tinham chegado a tempo de ver o sol desaparecer no mar. Ele olhou para ela e disse-lhe: – Não teria conseguido sem ti.